Na Argentina, no extremo oeste de Buenos Aires, está o maior detector de raios cósmicos do mundo: o Observatório Pierre Auger. Ele é composto por um arranjo de 1.600 estações de detecção, cada uma com cerca de um 1,5 km de distância uma da outra. A partir das montanhas que separam o país do vizinho Chile, é possível enxergar uma parte da sua grade de detectores, que se espalham por uma área das pampas do tamanho do Parque Nacional de Yosemite.
A colaboração, que agora conta com cerca de 400 cientistas, ligou o primeiro detector em 2004. Ela tem usado todo o arranjo para coletar dados para pesquisas em física de partículas e astrofísica desde 2008.
Hoje, eles estão disponibilizando uma seleção inicial desses dados aos cientistas, juntamente com todas as informações necessárias para usá-la.
Os cientistas do Pierre Auger já divulgaram dados anteriormente, tanto em suas publicações científicas de acesso livre quanto para fins educacionais e de divulgação no seu site. Mas esta é a primeira vez que eles divulgam informações detalhadas sobre cada evento de raio cósmico. A publicação inclui 10% de seu conjunto de dados até 2018, ou seja, um de cada 10 eventos registrados.
“É voltada para cientistas”, afirma o físico Xavier Bertou, que conduz pesquisas no Pierre Auger desde que escreveu sua tese de doutorado no observatório, há 25 anos. “A ideia é realmente incluir pessoas que nunca usaram os dados do Auger e permitir que elas os utilizem.”
Bertou e a sua colega Piera Ghia, que trabalha no Pierre Auger há 20 anos, lideraram conjuntamente o grupo que passou parte do último ano e meio preparando os dados para divulgação.
Para Ghia, os dados, juntamente com as publicações realizadas e a formação de jovens pesquisadores, constituem o legado duradouro do Observatório Pierre Auger. “O fato de estarmos fazendo isso [divulgando publicamente os dados] me deixa extasiada", comenta. "Quero dividir isso com o mundo”.
Os dados contam as histórias de mais de 22.000 eventos de raios cósmicos. Cada um começa bem acima do arranjo do Pierre Auger, onde uma partícula espacial voadora encontra a resistência repentina da atmosfera da Terra. A fricção do voo da partícula dá início a chuvas de partículas secundárias, que se multiplicam e colidem com o detector na planície. Atuando conjuntamente como um detector gigante, centenas de tanques e telescópios individuais capturam os sinais de cada partícula e seus semelhantes enquanto piscam e, muitas vezes, sibilam.
“Os eventos são menos compreendidos do que os estudados em ambientes controlados como os do Grande Colisor de Hádrons (GCH)”, diz Bertou. No GCH, os eventos de partículas acontecem em um vácuo no centro do detector. No Pierre Auger, eles se desenvolvem no céu, a cerca de 15 quilômetros de altura. Os cientistas do Grande Colisor de Hádrons criam e compreendem seus feixes de partículas, diz Ghia, enquanto "nós estamos realmente investigando no escuro".
Porém, algumas das partículas cuja captação foi feita pelo Auger nessa escuridão foram milhões de vezes mais energéticas do que qualquer coisa passível de produção pelos físicos em um laboratório. “Gostaria que as pessoas vissem nos raios cósmicos o que Xavier e eu vemos: um fascínio”, diz Ghia.
Bertou imagina que os cientistas podem querer comparar os dados de raios cósmicos do Pierre Auger com os dados registrados por outros detectores, como o Telescope Array, construído no leito de um lago seco em Utah, ou até o Ice Cube, no gelo da Antártica. Ele afirma que especialistas em aprendizado de máquina [machine learning] também expressaram interesse no conjunto de dados do Pierre Auger. “Conheço alguns que estão ansiosos para aplicar suas técnicas em áreas científicas diferentes de sua área de pesquisa.”
Esta deve ser a primeira de outras publicações detalhadas, de acordo com Bertou. Até agora, a colaboração preparou 200 megabytes de dados, um pouco menos do que você usaria para assistir a um filme na Netflix. Isso cobre os eventos, juntamente com detalhes como quando exatamente eles aconteceram, de qual direção vieram, se um detector de fluorescência captou um relance de brilho ultravioleta, o que os cientistas deveriam saber sobre os detectores que capturaram os sinais e como os cientistas do Pierre Auger os selecionaram, conectaram e analisaram. A publicação inclui um mapa do céu e uma ferramenta que os cientistas podem usar para examinar cada evento individual de raio cósmico.
Trabalhar no lançamento dos dados “é provavelmente uma das melhores coisas que fiz no Auger na minha carreira”, comenta Bertou.
“Foi especialmente gratificante poder trabalhar nesses dados no confinamento em casa durante a pandemia do coronavírus”, relata Ghia.
“Este ano foi doloroso para todos nós”, diz. “A cada duas semanas, participar dessas chamadas [com o grupo de divulgação dos dados] e trabalhar... meu astral melhorava muito. Foi uma coisa positiva, algo que construímos juntos”.