Começou com um passeio de carro.
Os físicos Ana Machado e Ettore Segreto andavam no seu carro por uma estrada italiana, vindos do Laboratório Nacional Gran Sasso em uma viagem de 40 minutos para ir buscar o seu filho na escola. Como era frequente, a física ocupava as suas mentes - e, especialmente, o tema da luz.
A luz é uma ferramenta central para os truques que os físicos têm na manga, sendo capaz de dar-nos vislumbres de galáxias distantes ou rastos de partículas subatómicas. Para físicos como Machado e Segreto, é um componente crucial para a reconstrução das interações entre as esquivas partículas denominadas neutrinos. Os neutrinos raramente interagem, o que transforma cada quantum de luz - denominado fóton - libertado quando isso acontece num pedaço precioso de informação. Como, perguntavam-se os cientistas, poderão estas joias de luz ser capturadas de forma mais eficiente por detetores?
Conceberam então uma pequena caixa que continha um fotomultiplicador de silício: um pequeno detetor capaz de contar fótons um a um. O topo da caixa seria de um filtro otico transparente, permitindo à luz entrar com facilidade, e estaria acoplado com uma película capaz de alterar a luz para um comprimento de onda diferente e visível. A luz transformada, incapaz de escapar pela mesma abertura, seria refletida dentro da caixa até ser absorvida e detetada pelo fotomultiplicador de silício.
Posteriormente, Machado comparou esta ideia com uma armadilha para pássaros, e batizou-a com a palavra indígena tupi-guarani que significa “armadilha para apanhar pássaros”. Assim nasceu o ARAPUCA.
Poucos meses antes do casal deixar Itália para aceitar novos empregos na Universidade de Campinas, no Brasil, país natal de Machado, apressaram-se em testar a sua ideia. Depois de algumas consultas na internet para saber que filtros e componentes poderiam ser adquiridos comercialmente (com o seu próprio dinheiro), contactaram um engenheiro mecânico em Gran Sasso para ajudá-los a construir a caixa e a instalar um sensor de silício. O pequeno protótipo consistia num mero recipiente de 3,3 centímetros quadrados feito de Teflon - mas comprovou o conceito.
Eles não imaginavam que a sua tecnologia iria brevemente unir cientistas de toda a América Latina.
Retorno ao Brasil
Animado pelo êxito, o casal iniciou os seus novos empregos no Brasil, concentrando-se na tecnologia ARAPUCA e no modo como a mesma poderia ser usada no Experimento de Neutrinos em Grande Profundidade (DUNE, do inglês Deep Underground Neutrino Experiment) internacional, um enorme empreendimento apoiado pelo Gabinete de Ciência do Departamento da Energia dos EUA e realizado no Laboratório do Acelerador Nacional Fermi, perto de Chicago.
O enorme projeto começava a ganhar forma, com planos para construir alguns dos maiores detetores de neutrinos do mundo e instalá-los a 1,5 quilómetros (perto de uma milha) de profundidade numa antiga mina transformada em laboratório subterrâneo. Protegidos de sinais exteriores, os detetores seriam então bombardeados com o feixe de neutrinos de alta energia mais intenso do mundo.
O objetivo do DUNE consiste em desvendar alguns dos mistérios dos neutrinos, buscando a resposta para a maior de todas as questões: se fazem parte do motivo pelo qual a matéria existe tal como a conhecemos. Para atingirem os seus objetivos, os cientistas precisariam de recolher enormes quantidades de dados das interações de neutrinos - incluindo a luz.
Numa conferencia LIDINE de 2015 em Albany, Nova Iorque, Machado e Segreto fizeram a primeira apresentação pública do conceito ARAPUCA. A receção foi positiva, e os ajustes e testes posteriores com o Fermilab e com novos colaboradores na Colorado State University mostraram uma tecnologia em rápida maturação. Os resultados foram tão bons, refere Machado, que propuseram a instalação de 32 módulos ARAPUCA no primeiro detetor ProtoDUNE - um protótipo do tamanho de uma casa para testar a tecnologia dos ainda maiores detetores finais do DUNE.
Mesmo com a iminência da data de início da construção, a colaboração aceitou a sua proposta. No verão de 2017, Machado e Segreto voltaram à Europa, desta vez ao CERN, para instalarem muitos dos detetores ARAPUCA durante os seis meses seguintes. Quando o detetor ProtoDUNE foi ativado em 2018, o sucesso do ARAPUCA foi claro: a tecnologia funcionou, a luz estava lá e os rastos eram maravilhosos.
“É engraçado pensar que tudo começou naquele momento, durante aquela longa viagem de carro”, refere Segreto.
“Nunca imaginámos que o ARAPUCA se transformasse no que é agora”, acrescenta Machado. “Nunca pensámos que esta ideia se tornaria realidade. Tudo o que nos aconteceu foi uma surpresa enorme.”
Propagação pelo continente
Retornados ao Brasil, Machado e Segreto encontraram-se no núcleo de um grupo em rápido crescimento.
O ARAPUCA tornara-se uma peça tecnológica importante para as experiências com neutrinos, mas não deixava de ser uma das mil peças necessárias para construir o DUNE. O ARAPUCA necessitaria de ligar-se a eletrónica a frio: o equipamento que permanece dentro do argônio líquido e que constitui a maior parte do detetor de neutrinos, pairando a uns gelados 184 graus Celsius negativos (300 graus Fahrenheit negativos). Esses aparelhos eletrônicos a frio teriam de realizar um interface com a eletrónica a quente do DUNE, que se situa fora do detetor, à temperatura ambiente. Em conjunto com simulações e testes, havia muito trabalho a fazer - e um número crescente de pessoas para ajudar.
As gavinhas científicas serpentearam a partir da Universidade de Campinas para outras universidades no Brasil e para outros países da América Latina, criando um consórcio latino-americano focado na deteção de luz. Muitos dos contactos foram pessoalmente feitos por Machado. Ela contactou físicos seus colegas, alguns conhecidos durante o seu programa de doutoramento, e encorajou-os a aderir às suas equipas.
Foi assim que se envolveu Jorge Molina, cientista na escola de engenharia da Universidade Nacional de Assunção, no Paraguai. A escola não possui um programa de pós-graduação em física, mas os engenheiros destacam-se na instrumentação, e por esse motivo aderiram em 2017 para trabalhar na parte eletrônica.
“Esta é uma grande oportunidade”, refere Molina. “Nunca nos foi delegado um projeto de tão grande dimensão como este. É uma oportunidade para demonstrarmos que conseguimos executá-lo, e que o executaremos bem. Será a porta para o próximo grande projeto que aí vem”.
Por vezes, a escassez das infraestruturas no país, que tem uma população de 7 milhões, aproximadamente a mesma do Massachusetts - implica que o grupo de Molina leve a sua ciência para a estrada. No início deste ano, o Paraguai enviou um investigador ao Fermilab para testar a eletrônica a temperaturas criogênicas na plataforma de testes ICEBERG.
Para muitos parceiros, participar no ARAPUCA é uma oportunidade para alargarem as suas competências. A equipe colombiana aderiu para trabalhar na eletrônica a quente, aproveitando a sua década de experiência com a execução de simulações para o experimento ATLAS no Grande Colisor de Hádrons do CERN e com a digitalização de sinais para pequenas experiências com neutrinos.
“A diferença entre o ATLAS e o DUNE, é algo que eu aprecio muito, quando começámos no ATLAS, o detetor já estava concebido", refere Deywis Moreno Lopez, cientista da Universidade de Antonio Nariño, na Colômbia. “Com o DUNE, temos a oportunidade de participar diretamente na concepção e na construção dos componentes. É uma excelente oportunidade para envolver as universidades e contactar mais de perto com a indústria”.
Os parceiros industriais serão essenciais para a produção das centenas e centenas de peças necessárias à instrumentação dos grandes detetores do DUNE. Cada um dos quatro módulos de detetores remotos conterá 17 000 toneladas de árgon líquido dentro de um contentor com quatro andares de altura. Os operadores do acelerador no Fermilab enviarão biliões de neutrinos a partir do complexo de aceleradores no Illinois, diretamente através da terra e sem necessidade de túnel, para os detetores no Dakota do Sul. A parcela de neutrinos que interagem produzirá partículas adicionais, nomeadamente elétrons e fótons, que serão capturados pela eletrônica, processados por algoritmos de computação e armazenados para análise de dados. O invisível tornar-se-á visível.
“Isto é quase ficção científica”, diz Cesar Castromonte, físico da Universidade Nacional de Engenharia do Peru e membro do grupo do Peru que começou a trabalhar no ARAPUCA no início deste ano. “Na maior parte das vezes, as pessoas ficam completamente surpreendidas quando falo sobre neutrinos - e surpreendidas por haver pessoas peruanas a trabalhar neste tipo de coisas”.
Para o DUNE, estas “coisas” incluem procurar uma explicação para o porquê da matéria existir no nosso universo, tentar explicar se os prótons decaem, e trabalhar no sentido de compreender melhor as explosões de estrelas e a formação dos buracos negros. Estes são grandes objetivos científicos que utilizam o maior detetor do seu tipo, e os colaboradores sabem que precisam de trazer as melhores soluções tecnológicas para os seus arsenais. Pouco depois do êxito dos testes iniciais ao ARAPUCA, a equipe começou a trabalhar em melhorias à concepção, para tornar o equipamento ainda melhor.
O novo X-ARAPUCA incluiu guias luminosas adicionais dentro da caixa, que canalizavam os fótons na direção do sensor. Os testes mostraram ainda mais luz capturada do que antes, e os cientistas decidiram incorporar 200 dos módulos recém-concebidos nos planos para o Detetor de Proximidade de Base Curta (SBND, do inglês Short Baseline NEar Detector) no Fermilab - uma outra experiência de neutrinos, e outro bom teste para as tecnologias DUNE. Machado espera que as placas eletrônicas, os filtros e as estruturas mecânicas sejam enviadas para o Fermilab, montadas e instaladas no SBND por volta de Dezembro.
Com os detetores de teste DUNE em funcionamento, a preparação da caverna para os enormes detetores remotos Sanford Lab em andamento e uma recente inovação para as novas melhorias do acelerador do Fermilab, equipes em todo o mundo apresentam rapidamente as suas peças do DUNE e visam iniciar a experiência por volta de 2026.
“Estamos muito entusiasmados”, refere Castromonte. “É uma oportunidade única na vida.”