No início deste ano, cientistas de toda a América Latina se reuniram em São Paulo. Foi o começo de algo novo: a primeira estratégia regional de infraestrutura de pesquisa em larga escala da América Latina.
A América Latina abriga um grande número de especialistas, a maioria dos observatórios astronômicos da Terra e um grande número de projetos de física de partículas e astrofísica. Mas só recentemente os cientistas latino-americanos atingiram uma massa crítica e angariaram apoio do governo para criar uma estratégia própria para o avanço da ciência.
“Pode haver alguém no Chile trabalhando no mesmo assunto que alguém na Venezuela ou na Colômbia, e talvez eles nem saibam disso”, afirma Carla Bonifazi, física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil. “Estabelecer conexões, abrir novos canais de comunicação e fazer um intercâmbio de ideias entre esses diferentes países pode iniciar novas colaborações para o progresso da ciência”.
A colaboração entre nações é uma das maiores forças motrizes de algumas das descobertas mais revolucionárias da física na história recente. Doze países da Europa, além de parceiros externos, como os Estados Unidos, reuniram recursos e conhecimentos por meio da CERN para construir o Grande Colisor de Hádrons. Nessa empreitada, descobriram o bóson de Higgs. O Conselho de Instalações de Ciência e Tecnologia do Reino Unido, a Sociedade Max Planck da Alemanha e o Conselho de Pesquisa da Austrália se juntaram à Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos para construir o projeto Advanced LIGO. Juntamente com a colaboração Virgo, na Itália, cujas instituições participantes estão localizadas em seis países da Europa, os cientistas usaram o detector Advanced LIGO para descobrir ondas gravitacionais.
Cientistas e formuladores de políticas de toda a América Latina estão se unindo para moldar o futuro de sua ciência e estão começando pela cosmologia e pela física de altas energias.
Projeto piloto
Os cientistas começaram a conversar de forma mais séria sobre uma estratégia regional em 2016, durante um simpósio de física de altas energias na Guatemala. Em 2018, formuladores de políticas do Encontro Ibero-Americano de Ministros e Altas Autoridades de Ciência, Tecnologia e Inovação fizeram um manifesto ministerial enfatizando a necessidade de se promoverem as atividades científicas dos pesquisadores e de se apoiarem novos projetos e colaborações.
Este ano foi marcado pelo primeiro workshop do LASF4RI , Fórum Latino-Americano para a Infraestrutura de Pesquisa em Grandes Experimentos.
“Por meio deste fórum, esperamos mapear e priorizar projetos científicos que fomentem colaborações e treinem uma nova geração de cientistas em áreas específicas”, relata Fernando Quevedo, físico guatemalteco e diretor do Centro Internacional de Física Teórica.
No workshop, que ocorreu no Instituto Sul-Americano de Pesquisas Fundamentais, afiliado ao ICTP, os participantes formaram dois grupos diferentes. Um grupo preparatório criará diretrizes e receberá relatórios das diferentes empreitadas em física de altas energias e cosmologia na América Latina, mapeando o cenário atual dos projetos científicos na região. Usando essas informações, o grupo de estratégia apresentará perspectivas e recomendações a serem expostas no próximo encontro ministerial.
“Para fazer tudo isso funcionar, precisamos envolver as pessoas e obter contribuições e apoio da comunidade”, diz Marta Losada, física colombiana que tem liderado essa iniciativa. “Com esse workshop, queríamos que todos tivessem acesso à situação atual, além de explicar o que queremos dizer quando falamos dessa estratégia. Queríamos mostrar por que é importante desenvolver essa infraestrutura de pesquisa aqui na América Latina a fim de avançarmos e sermos participantes ativos da ciência.”
Mais adiante, os envolvidos no projeto esperam que essa estratégia possa ser aplicada a uma ampla gama de campos científicos na região.
Um novo nível de participação
Eis uma razão para começar com a cosmologia e a física de altas energias: já existe um projeto internacional liderado pela América Latina para ser discutido. O laboratório subterrâneo ANDES aproveitaria a construção de um túnel rodoviário nas profundezas da Cordilheira dos Andes, entre Argentina e Chile, para abrigar uma variedade de experimentos que poderiam contar com a proteção de 1.700 metros de rocha.
“Esta enorme cobertura rochosa protegerá o laboratório contra a radiação natural vinda do espaço, permitindo a realização de experimentos extremamente precisos”, diz Xavier Bertou, físico do Centro Atômico Bariloche, na Argentina, que propôs originalmente o projeto junto com os colegas cientistas Osvaldo Civitarese, da Argentina, e Claudio Dib, do Chile. “Esses experimentos não funcionariam em outro laboratório, pois seriam mascarados por essa radiação espacial”.
O laboratório, que seria a primeira instalação de astrofísica liderada pela América Latina, poderia permitir o estudo de neutrinos e a pesquisa de matéria escura, além de investigações em geociências, que são de particular importância, uma vez que o laboratório fica em uma região fortemente geoativa. Também poderia viabilizar pesquisas em áreas como biologia, ciência dos materiais e climatologia.
“O ANDES representa um novo nível de participação na física de partículas para a América Latina”, diz Dib, físico do Centro Científico e Tecnológico de Valparaíso e coordenador nacional da iniciativa ANDES no Chile. “Ele ajudará a promover a física de partículas, especialmente para jovens estudantes que normalmente têm pouco acesso a laboratórios internacionais dessa área da física. Como ficará localizado próximo à fronteira entre o Chile e a Argentina e será liderado por pesquisadores latino-americanos, esperamos que também fomente um intercâmbio científico entre os diferentes países.”
Xavier vê o projeto como um próximo passo natural para a região, já que muitos grupos latino-americanos já participam de colaborações de física de partículas na Europa e nos Estados Unidos, bem como de colaborações em astropartículas em instalações na América Latina, como o Observatório Pierre Auger e o Observatório Cherenkov de Água de Alta Altitude (HAWC).
“A ciência que faremos será única na América Latina e será um enorme passo para a comunidade envolvida”, afirma. “Será um dos poucos laboratórios internacionais da região, viabilizando uma nova maneira de trabalhar em conjunto para criar oportunidades científicas em escala internacional”.
Um roteiro para o futuro
Como nada parecido ainda foi feito na América Latina, os cientistas terão que construir essa infraestrutura do zero. Mas para Marta, o valor agregado de uma nova estratégia regional supera em muito as dificuldades.
“Somos diferentes de outras regiões do mundo que implementaram estratégias semelhantes”, diz Marta. “Como nunca fizemos nada parecido aqui antes, tem sido um desafio conseguir que todos participem. Mas não podemos continuar trabalhando em pequenos grupos, em redutos limitados e esperarmos algum impacto. Temos que desenvolver uma estratégia conjunta.”
Rogerio Rosenfeld, físico do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista, no Brasil, é um dos organizadores do workshop e atual presidente da Sociedade Brasileira de Física. Ele afirma que espera que esse esforço se torne de fato internacional e fomente mais cooperação entre diferentes países da América Latina.
Segundo Marta, as sementes que estão sendo plantadas já começaram a criar raízes.
“Um dos principais efeitos que já estamos vendo é que as comunidades dos países estão conversando agora”, diz. “Estamos começando a nos organizar de uma maneira que, felizmente, será interessante e eficaz. Com esse processo, esperamos identificar nossos pontos fortes e fracos para podermos construir um roteiro bem definido de como avançar e ampliar nosso impacto científico.