Em 2000, Ingo Allekotte estava sentado em uma mesa em Malargüe, cidade com pouco menos de 18.000 habitantes aos pés da Cordilheira dos Andes, na Argentina, ouvindo uma palestra informal sobre partículas espaciais. A ocasião poderia ter sido algo corriqueiro para Ingo, que é cientista, mas ele não estava em uma universidade; estava em um restaurante, e o orador não era cientista, era o garçom. Simplesmente aconteceu de aquele funcionário aprender um pouco de astrofísica por causa do lugar em que ele mora e das pessoas que vêm visitar a cidade.
Atraídas por uma combinação de fatores ambientais, pessoas como Ingo foram até Malargüe para instalar diversos detectores e coletar sinais dessas partículas, chamadas de raios cósmicos.
E elas não foram as únicas a escolher a América Latina como base para seus estudos sobre o que há além da atmosfera da Terra. Inúmeros pesquisadores de todo o mundo deixaram sua marca na ciência, na tecnologia, na cultura e nas pessoas da América Latina, e uma dessas pessoas foi o funcionário desse restaurante. Dois locais de destaque são Malargüe, que abriga o observatório de raios cósmicos Pierre Auger, e o Chile, país com maior número de observatórios astronômicos do mundo.
Reduto de astronomia
Não seria difícil confundir o Deserto do Atacama, no norte do Chile, com a superfície de outro mundo. Chuvas esparsas tornam o Atacama uma das regiões mais áridas da Terra, dando a ela condições tão secas e estéreis como as que poderiam ser encontradas em Marte.
O Atacama se estende por centenas de quilômetros entre as elevações do litoral oeste e a Cordilheira dos Andes no leste. Devido à sua localização única, o deserto tem céu claro em mais de 90% das noites durante o ano, praticamente sem vapor de água na atmosfera.
“Quando você reúne todos esses fatores, você se depara com essas condições únicas que explicam por que o Atacama é o melhor lugar do mundo para a instalação de telescópios”, afirma Ezequiel Treister, astrônomo da Pontifícia Universidade Católica do Chile.
Atualmente, o Atacama e os Andes chilenos abrigam quase dez observatórios científicos astronômicos. Depois da construção do Grande Telescópio de Levantamento Sinóptico (Large Synoptic Survey Telescope, LSST), do Telescópio Europeu Extremamente Grande (European Extremely Large Telescope, E-ELT) e do Telescópio Gigante de Magalhães (Giant Magellan Telescope, GMT), o Chile terá cerca de 70% do total de recursos astronômicos do mundo.
O céu noturno impecável do Chile desperta o interesse da comunidade científica internacional há mais de um século. Já em 1800, astrônomos dos Estados Unidos e da Europa iniciaram expedições científicas no país sul-americano e ajudaram a fundar vários observatórios astronômicos na região.
Na década de 1960, a Universidade do Chile e a National Science Foundation (NSF) dos EUA fizeram uma parceria com Associação de Universidades de Pesquisa em Astronomia (Association for Universities for Research in Astronomy, AURA) para fundar o Observatório Interamericano de Cerro Tololo (Cerro Tololo Inter-American Observatory, CTIO). Esse complexo de telescópios e instrumentos astronômicos, construído nas montanhas que contornam o extremo sul do Atacama, tornou-se o primeiro grande observatório internacional do Chile. Pouco depois, o Observatório Europeu do Sul (European Southern Observatory, ESO) construiu o Observatório de La Silla, uma das várias unidades operadas pela instituição no país atualmente.
A enorme expansão na construção de observatórios, que começou há quase seis décadas, continua ainda hoje. “O desenvolvimento da astronomia no Chile nas últimas décadas tem sido exponencial", constata Ezequiel. "Estamos muito bem conectados com institutos de todo o mundo, principalmente dos EUA, da Europa e da Ásia”.
O trabalho realizado nos observatórios chilenos contribuiu para grandes avanços científicos, como a descoberta, em 1998, de que o universo está se expandindo em ritmo acelerado (uma percepção que levou ao estudo da energia escura), além da primeira imagem de um buraco negro, feita recentemente. “É difícil pensar em um único marco astronômico dos últimos 20 ou 30 anos que não tenha envolvido os observatórios do Chile”, diz Ezequiel.
A tendência contribuiu para o desenvolvimento de novos programas universitários relacionados à astronomia no Chile e para um crescimento no número de astrônomos profissionais. Monica Rubio, astrônoma e presidente da Sociedade Astronômica Chilena (SOCHIAS), lembra que, quando iniciou sua pós-graduação na década de 1980, não havia programas de doutorado em astronomia no Chile; ela teve que ir para o exterior (França) para fazer seu doutorado.
A situação mudou radicalmente hoje. “Nas últimas décadas, o financiamento disponibilizado pelo governo chileno e pelos observatórios internacionais que operam no país permitiu a oferta de programas de graduação, mestrado e doutorado em astronomia por mais instituições”, explica Monica. “Passamos de três universidades com astronomia em 2000 para 15 universidades nos dias atuais; são mais de 200 astrônomos e centenas de estudantes”, comemora. “O aumento dos números tem sido incrível.”
Acordos assinados pelos observatórios para reservar pelo menos 10% de seu tempo de observação para acadêmicos que trabalham em instituições chilenas ajudaram a promover a ciência no país. “Ganhamos muito com essa dedicação exclusiva do tempo de observação”, diz Ricardo Finger, engenheiro do Laboratório de Ondas Milimétricas da Universidade do Chile. “A astronomia se desenvolveu rapidamente e é hoje uma das ciências mais importantes do Chile”.
Transferência de tecnologia
No Laboratório de Ondas Milimétricas, um grupo multidisciplinar de astrônomos, engenheiros e técnicos trabalha no desenvolvimento de tecnologias astronômicas. Entre elas estão a construção de receptores para radiotelescópios e a geração de algoritmos para o processamento de dados.
Nos últimos anos, o laboratório também tem procurado formas de fazer a aplicação de suas tecnologias no sentido de ampliar seu uso por parte das indústrias chilenas. Um dos dispositivos desenvolvidos pela equipe lança mão de uma técnica de varredura de fases encontrada em radiotelescópios para detectar sinais de telefonia celular. O aparelho gera um mapa da radiação eletromagnética do ambiente, assim como uma câmera térmica gera um mapa de calor de determinada área.
“A ideia é que, com esta câmera, você possa visualizar um campo e saber se há, por exemplo, um celular fazendo transmissão, mesmo que ele esteja escondido”, explica Ricardo. “Pode ser útil em diferentes situações, como em buscas e resgastes, principalmente no Chile, que é um país com muitos terremotos.”
O laboratório também projetou um dispositivo que consegue detectar a temperatura e o nível de umidade do solo, além de transferir esses dados para um local a vários quilômetros de distância. A ferramenta tem uma utilidade especial na indústria de mineração, explica Ricardo, que usa um processo chamado “lixiviação” para extrair metais como o cobre, despejando uma solução de água e ácido sobre um enorme rochedo. Se houver muita água no solo, a mistura ácido-água pode transbordar e atingir o ambiente ao redor. A falta de água, por outro lado, pode levar a uma extração ineficiente.
“Várias empresas querem ser representantes desse produto”, comenta Ricardo. “Depois de alguns anos de testes e fracassos, este foi nosso primeiro caso de sucesso.”
Segundo Ricardo, a equipe já construiu vários outros dispositivos e ainda está à procura de novas formas de aplicar sua tecnologia fora do observatório. “Com certeza, haverá novas ideias.”
O crescimento dos grandes observatórios e a enorme quantidade de dados gerados nesses centros contribuíram para que o Chile desenvolvesse ferramentas avançadas de big data e astroinformática.
É muito provável que essas tecnologias ganhem um novo impulso quando o LSST, telescópio equipado com a maior câmera digital do mundo, estiver concluído no início da próxima década. Para apresentar um estudo profundo e detalhado do universo, o enorme telescópio que está sendo construído pela NSF coletará cerca de 30 terabytes de dados toda noite.
“A quantidade de dados que o LSST vai coletar é inédita”, relata Monica. “Uma das vantagens do desenvolvimento de tecnologias para gerenciar esse fluxo de informações”, acrescenta, “é que as ferramentas necessárias para a análise de big data podem ser facilmente aplicadas a outras áreas, como medicina, comércio e finanças”.
O governo chileno lançou recentemente o “Data Observatory”, uma iniciativa para coletar, analisar e armazenar grandes agrupamentos de dados gerados no país. O plano é usar os dados astronômicos no primeiro teste para esse projeto, que será realizado em colaboração com a Amazon Web Services e a Universidade Adolfo Ibáñez.
Observatório exclusivo na Argentina
Em 1992, os físicos Jim Cronin, vencedor do Prêmio Nobel e professor da Universidade de Chicago, e Alan Watson, professor da Universidade de Leeds, no Reino Unido, propuseram a construção de um enorme observatório para investigar raios cósmicos que colidem com a Terra em energias incrivelmente elevadas.
Essas partículas de energia muito elevada são raras e, portanto, difíceis de serem capturadas. Por isso, os cientistas queriam que seus instrumentos cobrissem a maior área possível. Os cientistas já haviam construído observatórios de raios cósmicos anteriormente, mas nenhum deles tinha o poder de coleta que Cronin e Watson estavam procurando.
Para concretizar essa visão, Cronin empreendeu esforços e espalhou entusiasmo pelo projeto em todo o mundo, o que acabou promovendo uma colaboração internacional. Em 1998, após uma série de oficinas, o grupo escolheu um local próximo a Malargüe, na Argentina, para instalar o ambicioso observatório de raios cósmicos, que foi batizado com o nome do pesquisador francês de raios cósmicos Pierre Auger.
"Malargüe era uma ótima localização por várias razões", explica Ingo, atual gerente de projetos do Observatório Pierre Auger. Antes de tudo, a cidade, localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, é cercada por uma área muito plana. Sendo relativamente isolada (a mais de 100 km da cidade mais próxima) e pequena, praticamente não emitia luz nem poluição no ar. Além disso, projetos anteriores de exploração e extração de urânio e petróleo na região haviam deixado certa infraestrutura básica, como algumas estradas. E o prefeito de Malargüe apoiou o projeto.
A construção foi concluída em 2008. A matriz tem hoje 3.000 quilômetros quadrados e conta com mais de 1.600 detectores.
O observatório usa dois métodos diferentes para detectar raios cósmicos: "detectores de superfície", que rastreiam partículas que passam por grandes tanques cheios de água, e "detectores de fluorescência", que captam a luz ultravioleta emitida quando as partículas cósmicas interagem com o nitrogênio da atmosfera da Terra.
Cientistas e engenheiros argentinos têm um papel importante tanto na construção do Pierre Auger quanto nas pesquisas que estão em andamento no observatório. De acordo com Ingo, cerca de 10% a 15% das instituições que participam do observatório são da Argentina. O restante vem de outros 16 país.
Carla Bonifazi, física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diz que optou por fazer seu doutorado no Pierre Auger para poder trabalhar na primeira grande colaboração internacional em física de partículas da Argentina. "Foi uma grande oportunidade", comenta Carla. "Eu estava lá no momento certo."
Logo após a inauguração do Pierre Auger, a Universidade Nacional de Cuyo, que fica em Mendoza, grande cidade a 400 km do observatório, abriu uma unidade regional em Malargüe. "Não foi por causa do observatório em si, mas acredito que a existência do observatório teve forte influência", afirma Ingo. "Há diversos casos de engenheiros e cientistas do observatório que lecionam na universidade."
Cientistas e engenheiros do Pierre Auger vêm se envolvendo em vários projetos paralelos, para além da física de raios cósmicos. Já atuaram em programas de monitoramento atmosférico usando instrumentos montados no local e prestaram serviços e suporte de infraestrutura para projetos sísmicos e programas de satélites. "Quando montamos um observatório desse tipo, você acaba tendo subprodutos que o tornam interessante e multidisciplinar", acrescenta Ingo.
Cidade pequena, mas internacional
Desde a abertura do Pierre Auger, a população de Malargüe só cresce; hoje, mais de 27.000 pessoas moram na cidade. Muitos cientistas estrangeiros viajaram para a cidade para trabalhar no observatório. Uma ou duas vezes por ano, mais de 100 colaboradores internacionais se reúnem em eventos científicos.
“Quando o observatório começou, o povo de Malargüe achava um pouco estranhos todos os visitantes internacionais que iam aos restaurantes e caminhavam pelas ruas da cidade”, comenta Gualberto Ávila, gerente do Observatório Pierre Auger.
Ainda assim, os funcionários do Pierre Auger tentam incentivar essas interações. “No começo, pensávamos em construir quartos para os cientistas visitantes”, lembra Ingo. “Mas descartamos essa ideia e decidimos estimular as pessoas que vêm ao observatório a alugarem um apartamento ou uma pousada na cidade.”
Ingo acredita que essa foi uma boa decisão, pois permitiu que os acadêmicos estrangeiros interagissem mais de perto com o povo da cidade de Malargüe, dando espaço, por exemplo, para palestras científicas improvisadas por garçons.
O Pierre Auger mudou a vida dos cidadãos de Malargüe de várias formas.
Cientistas do observatório já doaram dinheiro, livros e materiais pedagógicos para as escolas da cidade. Em 2006, a cidade inaugurou a Escola James W. Cronin, instituição de ensino fundamental que foi batizada em homenagem ao físico homônimo em razão de suas contribuições para a comunidade local.
Quando foi instalada uma linha de transmissão de energia elétrica para alimentar os detectores do observatório, várias propriedades rurais também foram conectadas à rede pela primeira vez. "Acho que esse foi o impacto mais importante para a infraestrutura da região", ressalta Gualberto.
Inicialmente, o plano era que o Observatório Pierre Auger funcionasse até 2015, mas a colaboração internacional concordou em aperfeiçoar suas instalações e estender sua vida útil por mais 10 anos pelo menos.
A ciência como guia
Há um centro de visitantes em Malargüe que oferece informações sobre o Observatório Pierre Auger e sobre a física dos raios cósmicos. Desde 2001, já recebeu mais de 100.000 pessoas de toda a Argentina e do exterior. As feiras de ciência realizadas de tempos em tempos pelo observatório também já atraíram estudantes e professores de todo o país.
“A ciência dos raios cósmicos se infiltrou na vida cotidiana de Malargüe”, comenta Ingo. “A cidade de Malargüe se projeta como destino de turismo científico”, afirma. “O observatório desempenha um papel importante nessa nova característica da cidade”.
O Chile, por sua vez, passou a ter pelo menos 10 observatórios astronômicos específicos para turismo, onde observadores de estrelas amadores podem olhar nos telescópios e enxergar o céu noturno mais de perto. Os observatórios profissionais também consideram que seus impactos na comunidade local são elementos fundamentais de suas missões.
Segundo Monica, as regiões que abrigam essas instalações também se beneficiaram economicamente com a recepção dos turistas, principalmente durante eventos especiais como o eclipse solar total que passou por partes do Chile e da Argentina em julho de 2019.
De acordo com Monica, a rápida evolução da astronomia no Chile também se deu pelo crescente interesse do público pela ciência. “Hoje vemos notícias de astronomia quase que diariamente. O céu excelente do Chile e suas ótimas instalações astronômicas passaram a ser parte da identidade nacional”.