Quando César Lattes terminou a sua licenciatura na Universidade de São Paulo, em 1943, ainda era um adolescente e o único estudante de física da sua turma. Mal sabia ele que, poucos anos depois, o seu trabalho de pesquisa estaria ligado a dois prêmios Nobel e se tornaria um herói nacional da ciência no Brasil, com ruas e praças em sua homenagem.
“Se as pessoas aqui sabem o nome de um físico, esse é o de César Lattes”, diz Cássio Leite Vieira, jornalista científico do CBPF, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, que escreveu a sua tese de doutoramento sobre uma técnica de detecção de partículas que Lattes ajudou a desenvolver.
“Os seus feitos foram fundamentais para o Brasil, e tiveram um efeito dominó na Argentina, Bolívia, no Chile, Uruguai e muitos outros países.”
Beneficiário da iniciativa de uma nova universidade para promover o início da pesquisa no campo da física experimental no Brasil, Lattes teve um papel fundamental no desenvolvimento da tecnologia utilizada para descobrir o píon, uma partícula de vida curta produzida quando as partículas do espaço colidem com a atmosfera da Terra.
Quando ele transferiu a sua tecnologia para o laboratório de aceleradores, os frutos desse trabalho ajudaram os cientistas norte-americanos a impulsionar a construção do Bévatron, o acelerador onde foi descoberto o antipróton.
O trabalho e a reputação de Lattes abriram o caminho para o desenvolvimento da física experimental no Brasil e na América Latina. O seu legado continua vivo em experiências de astrofísica de partículas em toda a região.
A física experimental na sua infância
Quando Lattes começou os seus estudos, não havia muita pesquisa em física experimental no Brasil. Antes da década de 1930, os professores universitários concentravam-se principalmente no ensino, e a pesquisa que realizavam centrava-se na teoria.
Isso mudou em 1934. Na tentativa de se destacar, a recém-fundada Universidade de São Paulo convidou o famoso físico italiano Enrico Fermi para lançar o seu programa de física teórica e experimental.
Fermi recusou, mas recomendou que o pesquisador russo-italiano Gleb Wataghin o substituísse. Um dos primeiros alunos de Wataghin foi Lattes.
A convite de Wataghin, outro famoso físico experimental italiano, Giuseppe Occhialini, veio ao Brasil para realizar pesquisas sobre raios cósmicos. Ele acabou por lecionar um curso de raios X que foi frequentado por apenas um aluno: Lattes. Occhialini transformou o curso numa experiência ‘mãos na massa’ para Lattes, encarregando-o da revelação de chapas fotográficas expostas à radiação. Tratava-se da porta de entrada de Lattes na física experimental e na pesquisa de ponta.
Em 1944, Occhialini regressou à Europa para trabalhar com o físico inglês Cecil Frank Powell, na Universidade de Bristol, onde os cientistas utilizaram placas fotográficas especiais chamadas placas de emulsão nuclear para detetar partículas carregadas. As placas são semelhantes às chapas fotográficas em preto e branco comuns. Elas têm uma camada de gelatina como suporte para o sal de prata sensível à luz. Quando as partículas carregadas passam através da placa, elas deixam rastros que se tornam visíveis após a revelação da placa.
Occhialini enviou uma dessas placas a Lattes, que estava estudando chuveiros de partículas atmosféricas por meio de detetores de partículas preenchidos com vapor supersaturado chamados câmaras de nuvens. Lattes rapidamente percebeu que as placas de emulsão eram superiores aos seus métodos atuais e, por isso, foi para Bristol para aprender mais sobre a técnica.
Lá, teve a ideia de adicionar boro à gelatina das placas fotográficas, uma modificação que lhe permitiria utilizá-las para estudar os raios cósmicos.
Em 1946, enquanto passava férias nos Pirineus franceses, Occhialini levou dois conjuntos de placas, uma com adição de boro por Lattes e outra sem, a um observatório de 2877 metros de altura acima do nível do mar, na montanha Pic du Midi. Quando regressou, revelou as placas e descobriu que as que tinham sido modificadas por Lattes mostravam rastros de uma partícula que até então nunca tinha sido observada.
A nova partícula acabou por ser um píon, um tesouro que os cientistas procuravam desde que o físico teórico japonês Hideki Yukawa previu a sua existência na década de 1930.
Alcançar novos patamares
Os cientistas tinham descoberto o píon, mas as placas não continham informações suficientes para que eles determinassem todas as suas propriedades, incluindo a sua massa.
Lattes calculou que se levasse as placas para uma altitude mais alta, onde seriam expostas a mais píons das colisões de raios cósmicos com a atmosfera, obteria a informação adicional de que precisava.
E, assim, partiu para o Monte Chacaltaya, aproximadamente duas vezes mais alto que o Pic du Midi, a uma altitude de 5421 metros, para deixar as suas placas fotográficas. Ele foi buscá-las um mês depois e regressou a Bristol, onde a equipe encontrou muitos mais decaimentos de píons. Os dados adicionais permitiram calcular a relação de massa entre píons e múons, um tipo diferente de partícula descoberta em raios cósmicos 10 anos antes, e demonstraram que o píon é mais pesado.
O desenvolvimento da técnica de emulsão fotográfica e a sua utilização para a descoberta do píon permitiram que Powell, pesquisador chefe em Bristol, recebesse o Prêmio Nobel da Física em 1950. Yukawa, que previu o píon, já havia recebido o prêmio no ano anterior.
A impulsionar a ciência no Brasil e além
Após a descoberta, Lattes percebeu que a técnica também poderia ser utilizada em aceleradores de partículas para detetar píons produzidos artificialmente.
Em 1948, levou o seu conhecimento de placas fotográficas para o Laboratório de Radiação na Universidade da Califórnia em Berkeley, conhecido hoje como Lawrence Berkeley National Laboratory. O laboratório abrigava o que era àquela altura o maior acelerador de partículas do mundo. Em poucos dias, ele e o seu colega norte-americano Eugene Gardner conseguiram detetar os píons que eram produzidos ali.
A experiência foi bastante divulgada pela mídia dos Estados Unidos. Essa publicidade ajudou o diretor do laboratório, o ganhador do prêmio Nobel Ernest Lawrence, a impulsionar a construção de um acelerador ainda mais potente chamado Bévatron.
De volta ao Brasil, Lattes foi aclamado como um herói da era nuclear. “Foi a primeira vez na história do nosso país que alguém realmente fez pesquisa de fronteira no campo da física experimental e se destacou por isso”, diz Vieira.
Lattes não se considerava uma celebridade, diz Vieira, mas concordou em se tornar a face de uma campanha popular em busca de mais financiamento governamental para a ciência. Um dos resultados desse esforço foi a fundação do CBPF em 1949, com Lattes como o seu diretor científico.
Nos anos seguintes, Lattes continuou a impulsionar a expansão do programa brasileiro de física experimental.
Em 1952, o CBPF assinou um acordo com a Universidade de San Andrés, na Bolívia, para construir o pico do Monte Chacaltaya um laboratório onde os cientistas pudessem estudar os raios cósmicos. O laboratório deu origem a novos grupos de pesquisa na Bolívia e em toda a América do Sul.
O baixo custo dos materiais utilizados, algumas placas fotográficas, reagentes químicos e um microscópio, permitiram que países com poucos recursos tecnológicos e financeiros realizassem pesquisas de ponta e se estabelecessem no campo da física de altas energias.
No final da década de 1950, Lattes e Yukawa expandiram a abrangência do laboratório Chacaltaya, dando início a uma frutífera colaboração entre o Brasil e o Japão na pesquisa de raios cósmicos. A parceria duraria mais de 30 anos.
A nova ciência espalha-se a partir do pináculo de Lattes
Lattes morreu em 2005. Nesse mesmo ano, o cientista francês Xavier Bertou e outros estavam implementando códigos computacionais no Observatório Pierre Auger, na Argentina, um observatório internacional concebido para estudar os raios cósmicos de energia extremamente elevada.
Para detetar tais partículas a partir do solo, o observatório utiliza uma série de tanques cheios de água chamados detetores Cherenkov. Quando as partículas de alta energia passam através dos tanques, estas viajam a uma velocidade superior à da luz através da água, criando um brilho azulado no seu caminho.
Bertou e os seus colegas queriam testar a sensibilidade dos detetores às explosões de raios gama.
“Descobrimos que poderíamos alcançar a mesma sensibilidade dos 1600 detetores do observatório com um único detetor, se o colocássemos em Chacaltaya”, diz Bertou.
Na sequência dessa conclusão, a equipe instalou um detector na montanha. Mas a ideia não ficou por aí. Transformou-se numa rede internacional de detetores chamada Observatório Gigante da América Latina (LAGO, na sigla em inglês).
Embora os detetores LAGO sejam uma derivação dos detetores Cherenkov do Observatório Pierre Auger, a tecnologia LAGO é muito mais simples, pois utiliza tanques de água menores, componentes eletrônicos mais simples e detetores menos sensíveis à luz.
“Esse conceito de design é intencional”, diz Iván Sidelnik, pesquisador chefe do LAGO, do Centro Atômico de Bariloche, na Argentina. “Isso garante que a nossa tecnologia seja acessível a todos os parceiros da colaboração e que ela possa ser construída por todos os institutos participantes, independentemente da sua dimensão”.
Atualmente, a colaboração LAGO conta com quase 100 membros de 10 países da América Latina e Espanha. Adriana Gulisano, física do Instituto Antártico Argentino e representante do LAGO na Argentina, acabou de viajar com colegas para adicionar à rede LAGO o primeiro detetor situado na Antártida.
Ela pretende utilizar os dados para aprender mais sobre o clima espacial: a complexa interação entre o vento solar, o campo magnético da Terra e a produção do chuveiro de partículas na atmosfera do nosso planeta.
“A instalação de um detetor nas duras condições da Antártida começou como uma ideia maluca que alguns de nós tivemos após um café há sete anos”, diz ela. “É tão gratificante ver que aquilo que pensamos se tornou realidade.”
Para muitos estudantes universitários de países de fora da Argentina, do Brasil e México, as potências da física latino-americana de altas energias, o LAGO revela-se como a porta de entrada para um campo mais amplo, levando frequentemente à participação deles em grandes colaborações internacionais.
Luis Nuñez, da Universidade Industrial de Santander, na Colômbia, ajudou a estabelecer a colaboração LAGO na Colômbia e na Venezuela, o seu país natal. “O ‘modelo de negócio’ da colaboração leva em conta as circunstâncias particulares da América Latina”, diz ele. “Em alguns lugares, como o Peru e a Bolívia, não existem grandes agências nacionais de financiamento; portanto, para que esses países possam participar do LAGO, a tecnologia precisa se ajustar ao orçamento das universidades locais.”
Vários estudantes de Nuñez estão trabalhando em experiências no Grande Colisor de Hádrons, do CERN, em Genebra. “A formação que fornecemos localmente pode realmente mudar a vida dos nossos estudantes e criar oportunidades para trabalhar em áreas de investigação que não temos na América Latina”, diz ele.
O legado de Lattes continua vivo
O físico boliviano e membro do LAGO Martín Subieta atribui ao LAGO o mérito de impulsionar a sua carreira na física experimental, que recentemente completou um ciclo completo.
Após a sua formação universitária no laboratório de Chacaltaya, Subieta mudou-se para a Itália para completar um doutoramento e prosseguir a pesquisa de pós-doutoramento, incluindo a realização de trabalhos na experiência ALICE, no CERN. Agora, encontra-se novamente na Bolívia, como professor na Universidade de San Andrés e pesquisador no Observatório Chacaltaya.
“O que começou com Lattes em Chacaltaya, bem como a descoberta do píon, foi maravilhoso para o Brasil e a Bolívia”, diz ele. “Na verdade, foi importante para a ciência em toda a região e originou conexões especiais entre a América Latina e o resto do mundo.”
A colaboração BASJE para a investigação de raios cósmicos em Chacaltaya, por exemplo, conectou a Bolívia ao Japão e ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts, uma forte relação que durou desde o início dos anos 60 até alguns anos atrás. Atualmente, a Bolívia está iniciando um novo projeto de astrofísica de partículas chamado ALPACA com o Japão.
Com o LAGO e outras parcerias, a América Latina estabeleceu-se como um terreno fértil para grandes projetos científicos internacionais.
A tendência continua com grandes projetos no horizonte, como a Rede de Telescópios Cherenkov, o Observatório de Raios Gama do Hemisfério Sul e a proposta do laboratório subterrâneo ANDES, defendida pelo fundador do LAGO, Bertou, um projeto que reforçaria a presença da América Latina na pesquisa de neutrinos e matéria escura.
“O mundo descobriu a América Latina como um ótimo lugar para a ciência de fronteira”, diz Vieira. “Aqui, não só se encontram excelentes condições de observação, mas também uma comunidade bem formada e vibrante de cientistas.”